A capoeira escrava e outras tradições
rebeldes no Rio de Janeiro, 1808-1850.
A rápida expansão da
capoeira ao
redor do mundo
globalizado resultou
também em um crescente
interesse
acadêmico nessa arte
marcial afrobrasileira.
Um número cada vez
maior
de monografias e teses
testemunha
o fato de que a
capoeira está se
tornando um campo de
pesquisa próprio.
O livro de Soares, já
em segunda
edição, é importante
não só para a
história da capoeira,
mas, de maneira
geral, para a
compreensão da gênese
da cultura escrava e
afro-americana.
O autor garimpou nos
arquivos
um incrível número de
fontes
primárias, a maior
parte das quais
não havia sido
utilizada anteriormente
por outros
pesquisadores.
Tanto praticantes de
capoeira quanto
estudiosos ficarão
interessados no
material coletado
acerca das origens
da arte marcial. Algo
como 84% das
centenas de africanos
presos pela prática
de capoeira durante o
período de
1810 a 1821 (quando
ela aparece pela
primeira vez nos
registros históricos)
vieram da região do
antigo reino do
Soares, Carlos Eugênio
Líbano. A capoeira escrava e outras tradições
rebeldes no Rio de
Janeiro, 1808-1850. 2ª ed.
Campinas, Editora da
Unicamp, 2004. 608p.
Kongo e Angola; e
entre estes os escravos
do estuário do rio
Congo eram
particularmente
proeminentes. Esse
detalhe poderá não
agradar àqueles
que acreditam que o n’golo de
Benguela foi o
principal antecessor
da capoeira;
entretanto, dada a presença
de crioulos e mestiços
já naquele
estágio inicial, o
autor enfatiza
que a capoeira era
acima de tudo uma
atividade escrava,
mais do que “uma
atividade
exclusivamente africana.
Na realidade,
parece-nos que ela é
fruto da combinação de
tradições africanas
dispersas com ‘invenções’
culturais
crioulas.” (p. 125).
Os capoeiristas atuais
podem ficar
desapontados pelo fato
de os registros
proverem tão poucos detalhes
concretos sobre o jogo
propriamente
dito. Ele nunca é
descrito pelos
policiais ou outras
autoridades, e em
razão disto nós ainda
não sabemos
muito acerca de sua
prática em comparação
a períodos
posteriores, sobre
os quais o próprio
Soares escreveu
um outro livro
clássico (A
CAPOEIRA E ESCRAVIDÃO
Afro-Ásia, 31 (2004), 365-367
365
negregada instituição:
os capoeiras
na Corte Imperial, 2ª ed., Rio de
Janeiro,
Access 1999). Mas o
autor
fornece um denso
relato sobre como
a capoeira estava
enraizada nas vidas
dos escravos urbanos e
dos libertos.
Exercícios de
capoeira, incluindo
as sempre mencionadas
cabeçadas,
eram praticados nas
praças da
cidade, na área do
porto, ao redor
de igrejas que
abrigavam irmandades
de negros e próximo
aos zungus,
as residências e
espécie de estalagens
de escravos de ganho e
“pessoas de
cor” livres. A
capoeira oferecia um
espaço fundamental
para a sociabilidade
escrava masculina, mas
também
era uma arma para
enfrentar
outros escravos ou a
polícia. Os primeiros
capoeiras usavam laços
coloridos,
chapéus ou gorros que
provavelmente
marcavam seu
pertencimento
étnico. Soares sugere
que lutas
pelo acesso às fontes
e pelo controle
de praças resultaram
na formação
de gangues, mas, como
ele mesmo
reconhece, a evidência
de que
essas gangues
existissem antes da
década de 1840 é na
verdade fraca.
Muito bem
documentadas, ao contrário,
são as tentativas das
autoridades
de erradicar a
capoeira, e a
forma como as
políticas em relação
a ela mudaram ao longo
do tempo.
Nenhuma outra prática
cultural jamais
foi objeto de tão
intensa (e em
última análise
mal-sucedida) repressão.
Os escravos que fossem
pegos
sofriam uma “correção
imediata” de
cem a trezentos
açoites, além de serem
muitas vezes enviados
à prisão
com trabalho (galés)
nos estaleiros.
Praticantes livres que
incorressem
nesse comportamento
inaceitável em
companhia de escravos
eram também
freqüentemente
maltratados e
engajados nas forças
armadas. Uma
parte substancial do
livro trata da vida
de capoeiras, e de
escravos de forma
mais geral, nas
diferentes prisões da
cidade e no arsenal da
Marinha. Soares
vê especialmente este
último
como um espaço
importante para a
geração de práticas de
resistência
mais abrangentes, dado
que ali os
escravos socializavam
com prisioneiros
políticos, marinheiros
e soldados.
Seu livro também cobre
o papel
crucial dos capoeiras
na repressão ao
motim promovido por
soldados irlandeses
e alemães em 1828, e o
papel
desempenhado pelos
cativos que chegavam
da Costa da Mina (a
região
do Golfo do Benim, na
África) na
comunidade escrava
carioca. Ele
enfatiza a divergência
de interesses
entre o Estado e os
senhores de escravos,
estes sempre se
queixando da
intromissão daquele em
seus direitos
de propriedade.
O quadro que emerge é
o de dois terrores
paralelos. As
autoridades adotavam
políticas de
intimidação contra
os capoeiras, e estes
por sua vez
instilavam o medo
entre as elites. Soares
insiste reiteradamente
nas dores
366 Afro-Ásia, 31 (2004), 365-357
de cabeça dos chefes
de polícia e nos
pesadelos das elites.
Essa imagem extremamente
tenebrosa de uma
batalha
desesperada para impor
a lei e a
ordem sobre uma
população escrava
rebelde é claramente
um reflexo do
tipo de fonte
utilizada. Alguns podem
considerar esta uma
visão exagerada,
já que afinal nenhuma
grande revolta
escrava jamais ocorreu
na cidade do
Rio de Janeiro. Mas
este seria o julgamento
fácil do observador
contemporâneo
que olha para trás. A
capoeira
emerge deste estudo
não como um
irrelevante nicho para
os historiadores
culturais, mas como
uma lente
através da qual se
pode apreender a
interação mais
complexa da cultura
escrava com a política
da elite.
Uma vez que o livro é
estruturado
tanto temática quanto
cronologicamente,
ele tende a repetir
evidências
e argumentos. Por que
repetir o que
cada estudioso alguma
vez possa ter
dito sobre a capoeira
do século XIX?
Isso pode ser um
problema comum
em se tratando de
terminar uma tese
de doutorado sob a
pressão dos prazos,
mas poderia se esperar
de uma
editora acadêmica que
tivesse um
cuidado maior na
revisão e na edição.
O livro se
beneficiaria enormemente
de uma compactação do
texto
e da correção de
certas estatísticas
estranhas (por
exemplo, as percentagens
na p. 601 somam 200% e
ainda
deixam de fora os 9 %
de moçambiques!).
Apesar desses
problemas editoriais
o livro permanece uma
contribuição
relevante para a
história
social da escravidão e
um marco nos
estudos sobre a
capoeira.
Mathias
Röhrig-Assunção
Professor do
Departamento de História
da Universidade de
Essex, Inglaterra.
Esta resenha foi
originalmente
publicada no Journal of Latin
American Studies (Londres). Tradução
do inglês de Fábio
Baqueiro
Figueiredo
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