domingo, 18 de março de 2012

CAPOEIRA E ESCRAVIDÃO




A capoeira escrava e outras tradições
rebeldes no Rio de Janeiro, 1808-1850.

A rápida expansão da capoeira ao
redor do mundo globalizado resultou
também em um crescente interesse
acadêmico nessa arte marcial afrobrasileira.
Um número cada vez maior
de monografias e teses testemunha
o fato de que a capoeira está se
tornando um campo de pesquisa próprio.
O livro de Soares, já em segunda
edição, é importante não só para a
história da capoeira, mas, de maneira
geral, para a compreensão da gênese
da cultura escrava e afro-americana.
O autor garimpou nos arquivos
um incrível número de fontes
primárias, a maior parte das quais
não havia sido utilizada anteriormente
por outros pesquisadores.
Tanto praticantes de capoeira quanto
estudiosos ficarão interessados no
material coletado acerca das origens
da arte marcial. Algo como 84% das
centenas de africanos presos pela prática
de capoeira durante o período de
1810 a 1821 (quando ela aparece pela
primeira vez nos registros históricos)
vieram da região do antigo reino do
Soares, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições
rebeldes no Rio de Janeiro, 1808-1850. 2ª ed. Campinas, Editora da
Unicamp, 2004. 608p.
Kongo e Angola; e entre estes os escravos
do estuário do rio Congo eram
particularmente proeminentes. Esse
detalhe poderá não agradar àqueles
que acreditam que o n’golo de
Benguela foi o principal antecessor
da capoeira; entretanto, dada a presença
de crioulos e mestiços já naquele
estágio inicial, o autor enfatiza
que a capoeira era acima de tudo uma
atividade escrava, mais do que “uma
atividade exclusivamente africana.
Na realidade, parece-nos que ela é
fruto da combinação de tradições africanas
dispersas com ‘invenções’ culturais
crioulas.” (p. 125).
Os capoeiristas atuais podem ficar
desapontados pelo fato de os registros
proverem tão poucos detalhes
concretos sobre o jogo propriamente
dito. Ele nunca é descrito pelos
policiais ou outras autoridades, e em
razão disto nós ainda não sabemos
muito acerca de sua prática em comparação
a períodos posteriores, sobre
os quais o próprio Soares escreveu
um outro livro clássico (A
CAPOEIRA E ESCRAVIDÃO
Afro-Ásia, 31 (2004), 365-367 365
negregada instituição: os capoeiras
na Corte Imperial, 2ª ed., Rio de Janeiro,
Access 1999). Mas o autor
fornece um denso relato sobre como
a capoeira estava enraizada nas vidas
dos escravos urbanos e dos libertos.
Exercícios de capoeira, incluindo
as sempre mencionadas cabeçadas,
eram praticados nas praças da
cidade, na área do porto, ao redor
de igrejas que abrigavam irmandades
de negros e próximo aos zungus,
as residências e espécie de estalagens
de escravos de ganho e “pessoas de
cor” livres. A capoeira oferecia um
espaço fundamental para a sociabilidade
escrava masculina, mas também
era uma arma para enfrentar
outros escravos ou a polícia. Os primeiros
capoeiras usavam laços coloridos,
chapéus ou gorros que provavelmente
marcavam seu pertencimento
étnico. Soares sugere que lutas
pelo acesso às fontes e pelo controle
de praças resultaram na formação
de gangues, mas, como ele mesmo
reconhece, a evidência de que
essas gangues existissem antes da
década de 1840 é na verdade fraca.
Muito bem documentadas, ao contrário,
são as tentativas das autoridades
de erradicar a capoeira, e a
forma como as políticas em relação
a ela mudaram ao longo do tempo.
Nenhuma outra prática cultural jamais
foi objeto de tão intensa (e em
última análise mal-sucedida) repressão.
Os escravos que fossem pegos
sofriam uma “correção imediata” de
cem a trezentos açoites, além de serem
muitas vezes enviados à prisão
com trabalho (galés) nos estaleiros.
Praticantes livres que incorressem
nesse comportamento inaceitável em
companhia de escravos eram também
freqüentemente maltratados e
engajados nas forças armadas. Uma
parte substancial do livro trata da vida
de capoeiras, e de escravos de forma
mais geral, nas diferentes prisões da
cidade e no arsenal da Marinha. Soares
vê especialmente este último
como um espaço importante para a
geração de práticas de resistência
mais abrangentes, dado que ali os
escravos socializavam com prisioneiros
políticos, marinheiros e soldados.
Seu livro também cobre o papel
crucial dos capoeiras na repressão ao
motim promovido por soldados irlandeses
e alemães em 1828, e o papel
desempenhado pelos cativos que chegavam
da Costa da Mina (a região
do Golfo do Benim, na África) na
comunidade escrava carioca. Ele
enfatiza a divergência de interesses
entre o Estado e os senhores de escravos,
estes sempre se queixando da
intromissão daquele em seus direitos
de propriedade.
O quadro que emerge é o de dois terrores
paralelos. As autoridades adotavam
políticas de intimidação contra
os capoeiras, e estes por sua vez
instilavam o medo entre as elites. Soares
insiste reiteradamente nas dores
366 Afro-Ásia, 31 (2004), 365-357
de cabeça dos chefes de polícia e nos
pesadelos das elites. Essa imagem extremamente
tenebrosa de uma batalha
desesperada para impor a lei e a
ordem sobre uma população escrava
rebelde é claramente um reflexo do
tipo de fonte utilizada. Alguns podem
considerar esta uma visão exagerada,
já que afinal nenhuma grande revolta
escrava jamais ocorreu na cidade do
Rio de Janeiro. Mas este seria o julgamento
fácil do observador contemporâneo
que olha para trás. A capoeira
emerge deste estudo não como um
irrelevante nicho para os historiadores
culturais, mas como uma lente
através da qual se pode apreender a
interação mais complexa da cultura
escrava com a política da elite.
Uma vez que o livro é estruturado
tanto temática quanto cronologicamente,
ele tende a repetir evidências
e argumentos. Por que repetir o que
cada estudioso alguma vez possa ter
dito sobre a capoeira do século XIX?
Isso pode ser um problema comum
em se tratando de terminar uma tese
de doutorado sob a pressão dos prazos,
mas poderia se esperar de uma
editora acadêmica que tivesse um
cuidado maior na revisão e na edição.
O livro se beneficiaria enormemente
de uma compactação do texto
e da correção de certas estatísticas
estranhas (por exemplo, as percentagens
na p. 601 somam 200% e ainda
deixam de fora os 9 % de moçambiques!).
Apesar desses problemas editoriais
o livro permanece uma contribuição
relevante para a história
social da escravidão e um marco nos
estudos sobre a capoeira.
Mathias Röhrig-Assunção
Professor do Departamento de História
da Universidade de Essex, Inglaterra.
Esta resenha foi originalmente
publicada no Journal of Latin
American Studies (Londres). Tradução
do inglês de Fábio Baqueiro
Figueiredo

Nenhum comentário:

Postar um comentário